Equipe:


Aurélio Giacomelli da Silva - Promotor de Justiça

Letícia Titon Figueira - Assistente de Promotoria

Ana Paula Rodrigues Steimbach - Assistente de Promotoria

Mallu Nunes - Estagiária de Direito

Giovana Lanznaster Cajueiro - Telefonista

Mário Jacinto de Morais Neto - Estagiário de Ensino Médio




segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

CELAS DA DELEGACIA DE PALHOÇA - ÍNTEGRA DA DECISÃO


AUTOS N. 045.12.000624-8



DECISÃO INTERLOCUTÓRIA



1. Tenho em mãos AÇÃO CIVIL PÚBLICA proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DE SANTA CATARINA em face do ESTADO DE SANTA CATARINA, SECRETARIA DE ESTADO DA SEGURANÇA e SECRETARIA DE ESTADO DA JUSTIÇA E CIDADANIA, na qual o autor requer que os réus sejam compelidos a reformar ou construir instalações apropriadas na Delegacia de Polícia de Palhoça, aptas a receber adolescentes apreendidos pela prática de ato infracional.
2. Inicio fazendo um pequeno reparo de ordem processual na petição inicial.
As duas Secretarias de Estado arroladas no polo passivo não podem figurar como parte nesta ação, porque são órgãos públicos despersonalizados, frutos do fenômeno que Celso Antônio Bandeira de Mello chama de “desconcentração” (in Curso de Direito Administrativo. 11a ed. São Paulo, Malheiros Editores, 1999. Pág. 97). Ambas não passam de simples repartições que integram a estrutura administrativa do Estado de Santa Catarina e que dele não se distiguem.
Portanto, se alguma omissão existe no tocante à política pública voltada para o atendimento dos adolescentes em conflito com a lei, quem deve ser responsabilizado é o Estado de Santa Catarina, e não suas Secretarias.
É da jurisprudência:

“A Secretaria Municipal do Meio Ambiente é  parte ilegítima para integrar o pólo passivo de ação ordinária que visa à renovação de alvará de comércio ambulante, uma vez que, como ente despersonalizado, opera como mero agente da pessoa jurídica de direito público a qual pertence, no caso, o Município de Porto Alegre” (TJRS, Agravo interno n. 70031382690, da Comarca de Porto Alegre, rel. Des. João Carlos Branco Cardoso, j. em 02.09.2009).
 “PROCESSUAL CIVIL - ILEGITIMIDADE PASSIVA 'AD CAUSAM' - SECRETARIA DE ESTADO - ÓRGÃO DA ADMINISTRAÇÃO ESTADUAL - AUSÊNCIA DE PERSONALIDADE JURÍDICA - INDEFERIMENTO DA INICIAL - APLICAÇÃO DO ART. 295, II, DO CPC. Sendo a Secretaria de Recursos Humanos e Administração órgão da Administração Pública Estadual, sem personalidade jurídica, não tem legitimidade para figurar no pólo passivo de ação judicial, já que não poderá arcar com os efeitos oriundos da sentença. Recurso a que se nega provimento” (TJMG, Ap. cível n. 000322824/00, da Comarca de Belo Horizonte, rel. Des. Kildare Carvalho, j. em 07.08.2003).


Por esses motivos, EXCLUO do polo passivo desta ação a SECRETARIA DE ESTADO DA SEGURANÇA e a SECRETARIA DE ESTADO DA JUSTIÇA E CIDADANIA.
3. A petição inicial traz em seu bojo pedido de antecipação de tutela.
O instituto da antecipação de tutela tem plena aplicabilidade no âmbito da ação civil pública, em face do que estabelecem os arts. 12 e 19 da Lei 7.347/85; arts. 84, §4º e 90 da Lei 8.078/90; e art. 273 do CPC.
Para que um pedido de antecipação de tutela tenha sucesso, deve haver prova inequívoca da verossimilhança das alegações feitas na inicial. Além disso, há que se verificar a existência de receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou caracterização do abuso do direito de defesa.
Examinando os autos, vejo que as alegações feitas na inicial são verossímeis.
Na Comarca de Palhoça, não existem entidades com as características definidas no art. 123 do ECA, destinadas a receber adolescentes infratores.
Em razão disso, os adolescentes que são apreendidos aqui costumam aguardar sua remoção para outros locais no Estado, permanecendo em repartição policial por até cinco dias, conforme faculta o art. 185, §2o, do ECA.
Sucede que a única Delegacia de Polícia existente em Palhoça não possui espaço apropriado para receber menores infratores. É o que infiro do ofício de fls. 104/106, redigido pela Delegada Regional de Polícia, Dra. Gisele de Faria Jerônimo:

“(...) a Delegacia de Polícia da Comarca de Palhoça possui sérias limitações físicas e dispõe de uma única cela que já foi interditada pelo Judiciário local em face de sua precária condição.
Desde 23 de dezembro de 2010 os presos permanecem na cela da Delegacia somente nos horários em que a Central de Triagem da Capital, por medida de segurança, deixa de receber os mesmos.
No setor destinado ao atendimento ao público, que chamamos de Comissariado, foi desativado um depósito e criada uma “sala de contenção” onde permanecem aquelas pessoas conduzidas até a lavratura do procedimento e posterior encaminhamento para a Central de Triagem ou mesmo para permanência na cela da Delegacia até ser efetivada a sua transferência.
Nesse espaço permanecem os adolescentes até a concessão da vaga para sua transferência.
Referido local já foi alvo de críticas por parte do público interno e externo, uma vez que a permanência de pessoas no local acaba por gerar ruído e odores tornando o local totalmente insalubre para aqueles que ali trabalham e aqueles que são atendidos na Delegacia.
Em resumo, Senhor Promotor, a Delegacia de Palhoça não possui espaço adequado para manter presos, sejam adultos ou adolescentes. Todo o possível é feito para dar cumprimento as determinações legais, porém não há outro local para se manter adolescentes senão a sala de contenção anexo ao Plantão da Delegacia” (fls. 104/105).

No parecer lavrado pela assistente social Gizelly Rodrigues (fls. 107/113), ficou esclarecido que os adolescentes costumam aguardar sua transferência em duas celas distintas, ambas com aspectos insalubres, pouca ventilação, mofo nas paredes, sendo que, numa dessas celas, sequer há banheiro ou local para sentar ou deitar. Segundo a referida profissional, “(...) a reclusão de adolescentes naquele ambiente pode apresentar riscos ao processo de desenvolvimento e principalmente de recuperação dos mesmos” (fl. 108).
O parecer da Vigilância Sanitária do Município de Palhoça segue no mesmo tom. Colho do relato de inspeção:

“(...) um acúmulo de detentos num pequeno espaço com pouca circulação de ar agrava a situação de risco de transmissão de doenças causadas por fungos, como micoses, doenças respiratórias. Cito também o risco de contrair tuberculose caso haja um doente bacilífero entre os demais.
As paredes e o teto necessitam de pintura, o banheiro não oferece condições satisfatórias de higiene, é recomendado também colchões com revestimento impermeável. Percebemos que é difícil manter um ambiente livre de umidade, pois há apenas uma entrada de ar, isso dificulta a circulação. Na parte interna da delegacia há um local também destinado a reclusão. Porém, também não oferece condições satisfatórias de higiene, já que aparentemente o que era um corredor foi transformado em uma pequena cela sem banheiro e cama. Quando nos referimos a parte de alimentação (...) isso também pode se tornar um problema pela má conservação dos alimentos e/ou restos de alimentos deixados no local causando um surto de vetores.
Sendo assim, considerando as normas sanitárias vigentes e o manual de orientações sobre as normas sanitárias do sistema carcerário, verificamos que os locais citados, oferecidos como cela de detenção continuam em "desacordo" com a legislação sanitária (fls. 122/123)”

Mais impressionante ainda é o relato feito pelo adolescente apreendido nos autos n. 045.12.000737-6, o qual ficou detido na Delegacia de Polícia de Palhoça por alguns dias, aguardando transferência para uma entidade educacional. Esse relato consta na petição inicial, fls. IX, mas o repriso abaixo, porque dá a exata dimensão da gravidade do caso em pauta:

"[...] 10:01 - Promotor de Justiça: você foi apreendido quando?
Adolescente: sábado;
Promotor de Justiça: você está desde sábado lá. Hoje é quarta-feira; Você tomou banho quantas vezes lá na cela?
Adolescente: uma vez só... eu pedia todo dia, não sou porco... Tomava banho todo dia em casa, como qualquer pessoa normal;
[...]
10:37 - Promotor de Justiça: você está em que cela ali? Tem uma cela dentro e a outra do lado de fora.
Adolescente: agora eu estava na cela do lado do escrivão da Palhoça, mas eu estava na cela que os presos estavam. Os presos maiores...
Eu só comi junto com eles; fiquei uns 20 ou 30 minutos...
Promotor de Justiça: ficasse 20 ou 30 minutos então com os maiores?
Adolescente: Sim... na cela onde ficam os presos;
Promotor de Justiça: Como está esta cela lá? Muito complicado de ficar ali?
Adolescente: eu não queria nem que o meu cachorro lá de casa ficasse naquela cela; Até meu cachorro vive melhor.
Promotor de Justiça: Mas por quê?
Adolescente: mau cheiro, não tem bacil para o cara fazer as necessidades...
Promotor de Justiça: Como fizesse as suas necessidades?
Adolescente: eu nem fiz, só mijei.
Promotor de Justiça:como você urinou?
Adolescente: tem um buraquinho que desce a água... na cela de dentro urinei num litrinho de refrigerante 13:07 [...]"
[...] (Transcrição de depoimento, em Juízo, prestado por adolescente Representado nesta Comarca de Palhoça e apreendido na Delegacia de Polícia deste Município. Autos n. 045.12.000737-6. Data: 25/01/2012).

Como se vê, os adolescentes detidos na Delegacia de Palhoça estão sendo privados de direitos básicos, pois ficam sem tomar banho durante longo período e não conseguem acessar o banheiro para fazer suas necessidades com a frequência necessária. Ainda são obrigados a permanecer em ambiente com odor insuportável de urina, na qual há risco de proliferação de doenças infectocontagiosas, em razão da ventilação insuficiente, da falta de higiene e da iluminação escassa.
Não bastasse isso, há ocasiões em que os adolescentes são colocados juntos com pessoas adultas, o que fere de morte o disposto no art. 185, §2o, do ECA.
Essa situação calamitosa já é de conhecimento do Estado de Santa Catarina. Em novembro de 2010, a cadeia situada na Delegacia de Polícia de Palhoça foi interditada pelo Juízo da 2a Vara Criminal desta Comarca, porque considerada inapta para acolher os presos da região (vide decisão de fls. 71/74). O Estado, embora tenha sido notificado a respeito desta decisão, não tomou providência. Nenhuma reforma foi feita.
Se essa cadeia não oferece condições dignas para receber pessoas maiores de idade, é evidente que também não pode servir para acolher adolescentes infratores.
Neste cenário, resta mais que clara a omissão do Estado de Santa Catarina. Os adolescentes da Comarca de Palhoça estão recebendo tratamento que ofende sua dignidade, porque o Estado nega-se a respeitar os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta, deixando de investir o mínimo necessário para ter celas capazes de abrigar infratores.
A omissão do Estado de Santa Catarina viola, de uma só vez, os seguintes dispositivos da Constituição Federal de 1988: art. 1o, inciso III; art. 5o, incisos III e XLIX; e art. 227, caput, e §3o, inciso V. Também estão sendo ofendidos os arts. 3o, 4o, 5o, 6o, 18 e 124, incisos V, IX e X, todos do ECA.
O Poder Judiciário não pode ficar inerte frente a este quadro. Configurada a omissão estatal, o magistrado tem o dever de combatê-la, fazendo o Poder Executivo lembrar que a Constituição Federal de 1988 ainda existe e precisa ser respeitada. É o que ensina Américo Bedê Freire Júnior:

“(...) em regra, o Executivo e o Legislativo devem proporcionar a efetivação da Constituição; contudo, quando tal tarefa não foi cumprida, não pode o juiz ser co-autor da omissão e relegar a Constituição a um nada jurídico.
Corroborando a função subsidiária do juiz na implementação das políticas públicas, Oswaldo Palu pontifica: ‘No Estado Democrático de Direito, a questão da escolha de prioridades cabe a um legislador democraticamente eleito e, em nosso sistema presidencialista, a um governo democraticamente eleito, que, como sabemos, trata-se do executivo e sua base de apoio parlamentar. E somente em casos de desvios erráticos ou de uma passividade arbitrária ante casos evidentes de situações precárias cabe uma correção, constitucionalmente fundada aos atos de governo’.
Não existe discricionariedade na omissão do cumprimento da Constituição. Na verdade, trata-se de arbitrariedade que pode e precisa ser corrigida.
Ademais, a Constituição prevê em seu art. 5o, XXXV, peremptoriamente que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito. Uma interpretação adequada do dispositivo leva à conclusão de que não somente a lei, mas também atos, inclusive omissivos, do Poder Legislativo e Executivo não podem ficar sem controle” (FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. 1a ed. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2005. Págs. 70/71).

Sobre o tema do controle judicial das omissões do Poder Público, cito o seguinte julgado do STF:

“(...) se o Estado deixar de adotar medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exequíveis, abstendo-se, em consequência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a insconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo poder Público (...). As situações configuradas de omissão insconstitucional – ainda que se cuide de omissão parcial, derivada da insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva fundada na Carta Política, de que é destinatário – refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança da Constituição, expondo-se, por isso mesmo, à censura do Poder Judiciário” (STF, ADI 1.458 MC/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Celso de Mello, j. em 23.05.1996).

E nem se diga que a omissão do Estado de Santa Catarina seria justificável pela falta de recursos financeiros. Estamos tratando de direitos dos adolescentes, os quais gozam de proteção integral e devem ser garantidos com absoluta prioridade pelo Poder Público (art. 227 da CF/88 e arts. 3o e 4o do ECA). Não pode alegar falta de recursos um Estado que investe milhões de reais em propaganda do governo e deixa em último plano a reserva de verbas para concretizar os direitos dos adolescentes. Inaplicável aqui, portanto, a chamada “cláusula da reserva do possível”.
Volto a buscar amparo na jurisprudência do STF para fundamentar minha decisão:

“CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE ABUSO E/OU EXPLORAÇÃO SEXUAL. DEVER DE PROTEÇÃO INTEGRAL À INFÂNCIA E À JUVENTUDE. OBRIGAÇÃO  CONSTITUCIONAL QUE SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO. PROGRAMA SENTINELA–PROJETO ACORDE. INEXECUÇÃO, PELO MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS/SC, DE REFERIDO PROGRAMA DE AÇÃO SOCIAL CUJO ADIMPLEMENTO TRADUZ EXIGÊNCIA DE ORDEM CONSTITUCIONAL. CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE TÍPICA HIPÓTESE DE OMISSÃO INCONSTITUCIONAL IMPUTÁVEL AO MUNICÍPIO. DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO PROVOCADO POR INÉRCIA ESTATAL (RTJ 183/818-819). COMPORTAMENTO QUE TRANSGRIDE A AUTORIDADE DA LEI FUNDAMENTAL (RTJ 185/794-796). IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DA CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL SEMPRE QUE PUDER RESULTAR, DE SUA APLICAÇÃO, COMPROMETIMENTO DO NÚCLEO BÁSICO QUE QUALIFICA O MÍNIMO EXISTENCIAL (RTJ 200/191- -197). CARÁTER COGENTE E VINCULANTE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE DAQUELAS DE CONTEÚDO PROGRAMÁTICO, QUE VEICULAM DIRETRIZES DE POLÍTICAS PÚBLICAS. PLENA LEGITIMIDADE JURÍDICA DO CONTROLE DAS OMISSÕES ESTATAIS PELO PODER JUDICIÁRIO. A COLMATAÇÃO DE OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS COMO NECESSIDADE INSTITUCIONAL FUNDADA EM COMPORTAMENTO AFIRMATIVO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS E DE QUE RESULTA UMA POSITIVA CRIAÇÃO
JURISPRUDENCIAL DO DIREITO. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DELINEADAS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA (RTJ 174/687 – RTJ  175/1212-1213 – RTJ 199/1219- -1220). RECURSO EXTRAORDINÁRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL CONHECIDO E PROVIDO” (STF, RE 482.611/SC, Decisão Monocrática, rel. Min. Celso de Mello, j. em 23.03.2010).

Importante frisar que o pedido de reforma das celas é algo que pode ser facilamente atendido pelo Estado de Santa Catarina, sem que haja comprometimento do orçamento público. Não se está exigindo neste processo a edificação de uma obra de grande porte, altamente custosa, mas sim a simples adequação de um espaço destinado a receber adolescentes infratores.
Justo, pois, que o pleito de antecipação de tutela articulado pelo Ministério Público seja acolhido. As alegações feitas na inicial são verossímeis. De outro lado, há risco de dano irreparável. As celas precisam ser melhoradas imediatamente, sob pena da dignidade dos adolescentes que lá permanecem, ainda que durante um breve período de tempo, continue sendo violentada.
Estou deferindo o pedido de antecipação de tutela, sem a prévia oitiva do Estado de Santa Catarina, porque entendo que o caso sob exame é excepcional. A omissão de que trato aqui é gravíssima, pois vem acarretando a violação de direitos humanos de adolescentes em conflito com a lei. Portanto, não há tempo a perder.
Sobre a possibilidade de deferimento de liminar em ação civil pública, sem prévia oitiva do Estado, vale conferir o seguinte precedente:

“ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONCESSÃO DE LIMINAR SEM OITIVA DO PODER PÚBLICO. ART. 2° DA LEI 8.437/1992. AUSÊNCIA DE NULIDADE.
1. O STJ, em casos excepcionais, tem mitigado a regra esboçada no art. 2º da Lei 8437/1992, aceitando a concessão da Antecipação de Tutela sem a oitiva do poder público quando presentes os requisitos legais para conceder medida liminar em Ação Civil Pública.
2. No caso dos autos, não ficou comprovado qualquer prejuízo ao agravante advindo do fato de não ter sido ouvido previamente quando da concessão da medida liminar .
3. Agravo Regimental não provido”. (STJ, AgRg no AI 1.314.453/RS, rel. Min. Herman Benjamin, j. em 21.09.2010).

O argumento da irreversibilidade também não pode obstar o deferimento da antecipação de tutela buscada pelo Ministério Público. Como bem destacou o Desembargador Jaime Ramos, membro do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por ocasião do julgamento do Agravo de Instrumento n. 2011.039816-7, “a legislação que rege a matéria deve ser interpretada sob a ótica da proporcionalidade no sentido da possibilidade da concessão da tutela antecipada, ainda que irreversível a medida, quando for absolutamente necessário obrigar o Poder Público a satisfazer, de modo excepcional, obrigação de proporcionar à população os direitos básicos assegurados na Carta Magna”.
Com essas considerações, DEFIRO o pleito de antecipação de tutela constante na inicial, para:
(A) PROIBIR, imediatamente, o ingresso e permanência de adolescentes apreendidos por atos infracionais na “sala de contenção” e celas localizadas na Delegacia de Polícia de Palhoça;
(B) PROIBIR, imediatamente, que adolescentes apreendidos pela prática de atos infracionais nesta comarca permaneçam na mesma seção que adulto segregado, nos termos do art. 185, § 2o, do ECA;
(C) DETERMINAR que o réu providencie, por meio de reforma, construção ou outra forma cabível, no prazo de 90 dias, instalações apropriadas na Delegacia de Polícia de Palhoça para alocar os adolescentes apreendidos pela prática de ato infracional, nos moldes do art. 185, §2o, do ECA, observando as diretrizes da Vigilância Sanitária, Vigilância Epidemológica, do Corpo de Bombeiros Militar, bem como de outras entidades fiscalizadoras;
(D) ORDENAR que o réu providencie, imediatamente, repartição com instalações apropriadas, de acordo com o item anterior, em seção isolada dos adultos, localizada na região da Grande Florianópolis/SC, para encaminhar os adolescentes apreendidos pela prática de ato infracional no Município de Palhoça, até que seja providenciada repartição policial adequada nesta Comarca, conforme descrito no item anterior, aplicando-se analogicamente, o disposto no art. 185, §2o, do ECA;
(E) ORDENAR que o réu informe, no prazo de 10 dias, para onde serão encaminhados os adolescentes apreendidos na prática de ato infracional no período de transição citado no item acima, bem como no que consistirá a adequação (reforma, construção etc) dos espaços destinados aos adolescentes na Delegacia de Polícia de Palhoça.
4. Considerando que no item “C” acima foi estabelecida obrigação de fazer, nada impede que seja fixada uma multa cominatória para coagir o Estado a realizar a adequação necessária nas celas da Delegacia de Polícia de Palhoça. Tal multa encontra respaldo nos arts. 287 e 461 do CPC, bem como no art. 11 da Lei 7.347/85.
Definindo o alcance do art. 11 da Lei 7.347/85, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que a multa “(...) pode ser direcionada não apenas ao ente estatal, mas também pessoalmente às autoridades e aos agentes responsáveis pelo cumprimento das determinações judiciais” (STJ, REsp 1111562/RN, rel. Min. Castro Meira, j. em 25.08.2009). A única exigência que se faz, para que a multa seja destinada às autoridades responsáveis pelo adimplemento da obrigação de fazer, é que as mesmas sejam notificadas, de alguma forma, para se manifestarem nos autos, de maneira que possam exercer os direitos ao contraditório e à ampla defesa.
No bojo do acórdão lavrado nos Edcl no REsp 1111562/RN, o Ministro Castro Meira deixou consignado que essa notificação da autoridade deve ser realizada antes da tomada da decisão liminar. Neste ponto, peço vênia para discordar. Se o próprio STJ entende que em casos excepcionais a liminar na ação civil pública pode ser deferida sem a oitiva da parte contrária, não vejo problema em estabelecer a multa cominatória destinada à autoridade pública inaudita altera pars. Como bem ponderado pelo Desembargador do TJSC, Luiz Cézar Medeiros, no voto proferido no Agravo de Instrumento n. 2011.006614-3, “nada impede que a autoridade pública venha posterimente aos autos comunicar ao Juízo a existência de situação excepcional impeditiva da obediência do comando judicial, no interregno nele fixado, sem afrontar, por conseguinte, os seu direito ao contraditório e à ampla defesa”.
Isto posto, FIXO multa cominatória, no valor de R$ 1.000,00 para cada dia de atraso (R$ 500,00 para cada secretário), destinada ao Secretario de Estado da Segurança Pública, Senhor César Augusto Grubba, e à Secretária de Estado da Justiça e Cidadania, Sra. Ada Faraco de Luca, a fim de persuadir ambos a tomarem as providências necessárias no sentido de tirar o Estado de Santa Catarina de sua inércia e fazê-lo cumprir a obrigação de fazer estabelecida no item “C” da página n. 10 desta decisão.
Tal multa será descontada diretamente da folha de pagamento dos citados secretários, sendo revertida em favor do FIA – Fundo da Infância e Juventude de Palhoça.
5. CITE-SE o réu (via oficial da infância e juventude), na pessoa do Procurador Geral do Estado, para, se desejar, ofertar defesa, no prazo legal (art. 297 c/c art. 188 do CPC).
6. NOTIFIQUEM-SE, pessoalmente (via oficial da infância e juventude), o Secretario de Estado da Segurança Pública, Senhor César Augusto Grubba, e a Secretária de Estado da Justiça e Cidadania, Sra. Ada Faraco de Luca, para, se desejarem, apresentar defesa, na condição de terceiros interessados, no mesmo prazo estabelecido no item “5” acima.
7. NOTIFIQUE-SE o Delegado Regional (via oficial da infância e juventude), responsável pela Delegacia de Polícia de Palhoça, para que cumpra as determinações contidas nos itens “A” e “B” de fl. 10 desta decisão.
8. NOTIFIQUE-SE o DEASE (via oficial da infância e juventude), na pessoa do Gerente Roberto Augusto Carvalho Lajus, para que tome conhecimento desta decisão.
9. INTIMEM-SE e CUMPRA-SE, com urgência.
Palhoça (SC), 24 de fevereiro de 2012.

André Augusto Messias Fonseca
Juiz de Direito




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